quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Padre Manuel Henriques - O Pintor Santo (II)

Capítulo XC
Da exactidão com que se houve na observância dos seus votos

“Em primeiro lugar quero referir os exemplos que nos deixou na observância dos votos, pois neles consiste a substância do estado Religioso. Em tudo o que na Companhia se pode exercitar este servo de Deus deixou-nos singulares exemplos. Primeiramente no comer, porque muitas vezes não comia senão os pedaços mais duros, as côdeas do pão e para quem nisso reparava respondia que aquilo era muito bom para enxugar o estômago. O seu nome era sempre o comum, o vulgar, sem admitir particularidades ou mimos. Sofria com grande alegria a falta do necessário, quer em casa quer andando por fora, ninguém o via descontente por qualquer falta de comodidade. No vestir a sua pobreza era ainda maior, nem se pode explicar. Nos seus calções chegaram a contar-lhe cento e cinquenta remendos distintos, alguns sobre outros, tudo isto por amor à sua santa pobreza. Estes calções de que falei eram os que usava em dia de festas solenes porque outros ainda piores tinha para o trabalho. E o mesmo acontecia com o calçado, o gibão, a mesma pobreza no barrete, no terço por onde rezava, o hábito, etc… Andando por fora a sua pousada preferida era algum palheiro ao qual se recolhia com gosto. Na virtude da caridade foi mais anjo que homem. Usava remédios medicinais violentíssimos; aplicava penosas e santas invenções durante a noite. Quando interpelado por outros padres respondia que antes queria perder o corpo que a alma. Na obediência foi exactíssimo sem se desviar um só ponto das ordens dos seus superiores.

Capítulo XCI
De muitas outras virtudes do irmão Manuel Henriques

Foi o irmão Manuel Henriques homem de muita caridade quer para Deus quer para o próximo ganhando muita estimação. Procurava ajudar tudo com práticas espirituais e bons conselhos. Com a gente de fora falava sempre de Deus e ao falar desta matéria obteve graças particulares. Para aumentar a devoção no próximo fazia muitas viagens por ter a noção de que entrava nos corações dos ouvintes. Fugia sempre de murmurações e nesta matéria mostrou sempre grande recato e cautela. Se alguns, por lhe saberem a condição, de propósito o investigavam, ele fugia benzendo-se e dizendo: Jesus, arrenego eu o diabo, indo embora. Mas tudo isto fazia com muita graça, que ninguém se escandalizava. Indo para Nossa Senhora da Lapa se acomodou numa estalagem onde outros passageiros diziam ordinarices. Chegou-se a eles, começou a falar de Deus, cortou com aqueles impropérios e fê-lo com tal agrado que todos que deixavam de comer para o ouvir; e disseram, para mostrar o gosto com que o ouviam, que estariam ali toda a vida para assistir a práticas tão santas e proveitosas. E, ao despedirem-se, bem manifestaram a saudade do afastamento. Chegado a Nossa Senhora da Lapa foram-no visitar alguns amigos, que, de lance, começaram a murmurar. Parecia que estava de aviso, atalhou-os com bons modos e práticas, contando-lhes que um outro irmão, usando das mesmas virtudes, quando morreu, foi visto com os olhos muito resplandecentes. Era costume seu, andar sempre provido de bons e santos exemplos, para estas ocasiões. Com os enfermos usava da maior caridade. Ajudava-os sempre e a todos visitava. Indo um dia caminhando, o moço que o acompanhava achou-se indisposto; desceu do cavalo onde se transportava e com o moço trocou. Os pobres recomendava a quem os podia ajudar. Quando lhe davam qualquer coisa, tudo guardava para eles. A prática da caridade era uma constante. Quando esteve em Sevilha uma vizinha deu à luz uma criança, mas não tinha leite para o amamentar. Então Manuel Henriques tomou por devoção levar todos os dias a criança a quem lhe pudesse dar de mamar. A justiça, que já o conhecia, deixava-o passar livremente. Se algum oficial de justiça, que ia de novo, reparava, logo outro lhe dizia: Deixem-no passar que é o caritativo Henriques. Sua devoção foi admirável. Todos os dias, antes da comunidade se levantar, tinha duas horas de oração. Quando de noite se levantava e ia a alguma capela, fazia-o com os pés descalços ou só com as meias, para não ser ouvido ou acordar os colegas. Antes da ladainha tinha meia hora de oração. Neste santo emprego gastava todo o tempo que lhe sobrava do seu ofício. Dizia que na oração se comunicava com Deus. Nela era pontualíssimo. Nos dias santos, ainda mais se entregava à oração. Havia, pelo menos, três missas. A todas ajudava. Do Santíssimo Sacramento foi particular devoto, visitando-o muitas vezes. Depois da comunhão fazia largos espaços de recolhimento. Em obséquio da Senhora da Lapa rezava com especial atenção. Ao domingo começava a rezar pelos mistérios gozosos, à segunda pelos dolorosos, à terça pelos gloriosos e por esta ordem continuava. A quarta e sábado rezava pelas excelências da Senhora e dizia que sentia em sua alma particular consolação depois que começara a rezar desta maneira. Também foi particular devoto de Santo António. Quando lhe faltava alguma coisa, logo se punha de joelhos e rezava ao Santo um Pai Nosso e uma Ave-Maria. Um dia, depois de ter revolvido toda a casa por um papel que lhe faltava e lhe era muito necessário, se pôs de joelhos no meio da casa e fez a sua costumada devoção. Acabada esta, ele foi direito a uma parte esquisita, onde antes não imaginava estar tal papel e aí o achou. Na penitência e mortificação era insigne. Todas as noites fazia: uma à meia noite e outra de madrugada. A outras também; no refeitório e na oficina. Todas as sextas-feiras fazia cilício e muito doloroso. Jejuava, comia muitas vezes no chão. Sempre que lhe punham comida na frente, deixava o melhor. Bebia vinho mas sempre com três partes de água. O seu dormir era, não numa cama, mas só no colchão encostado a uma parede a que se encostava. Padecia de muitos e graves achaques, dos quais, se alguma vez falava, era só para dar graças a Deus. Se lhe diziam que buscasse ou consentisse algum remédio logo respondia: em mim pouco ou nada se perde. Era muito escrupuloso mas só em coisas que lhe dessem descanso; nunca nas que lhe dariam trabalho. No trabalho foi tão diligente que ninguém o via em momentos de ócio. Ou trabalhava no seu ofício ou então rezava ou trabalhava em obra religiosa.”
Continua...

1 Olhares:

Anónimo disse...

Na primeira abordagem a esta personagem falou-se na localidade de S.João de Mesquitela que porém não consta no território nacional. Procurando por Mesquitela apenas, surgem 3, 2 no Distrito da Guarda, em Almeida e Celorico da Beira e 1 no Distrito de Viseu, na zona de Mangualde, sendo que sem dúvida alguma a teoria na altura apresentada tem todo o cabimento. Na realidade a localidade é Quintela da Lapa)do Concelho de Sernancelhe que foi habitada por Jesuítas que para além de outras obras construiram o Santuário, e o padroeiro é São João Batista e nessa mesma localidade sim, foi criada a Companhia de Jesus, que após a sua extinção passou a colégio, e ali funcionou até 1754, passando depois à posse da coroa.