terça-feira, 3 de novembro de 2009

Carlos Lepierre Tinoco

Do livro “Correspondência frustrada”

“Nessa noite sentiu a necessidade de escrever a um amigo. Um engraxador de sapatos que não usava. Não sabia nada. Percebia, vagamente, o que até os cães podem perceber, vagamente, sem saber ao certo porquê: que existe o bem e o mal.

Meu Amigo

Viste-me desaparecer.
Se ouvires dizer que fugi, não acredites: porque fugir, para ti, é ser cobarde; e para mim, existe uma única cobardia: não ir até ao fim de tudo, por ter medo da verdade.
Não há nenhuma verdade perigosa; o perigo foi inventado para assustar aqueles que se assustam.

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Quando te disseram: «tenha paciência», pergunta sempre: «o que é a paciência?»
Quanto te disserem: «deixa lá que hão-de vir melhores dias», responde sempre: «hão-de vir melhores dias, mas sem «deixe lá».
Quando te disserem: «vamos a vêr se se arranja isso», responde sempre «vamos vêr».
Evita sempre dizer: «Muito obrigado».
Quando te disserem: «esta vida é uma passagem», pergunta sempre: «porque é que os comboios não têm só uma classe, embora tenham imensas carruagens?»
Quando ouvires falar em «revolução», nunca te esqueças de dizer: «há que distinguir». E se te perguntarem: «distinguir o quê?», não respondas, e volta as costas.

v

A amizade que tu me tens não é igual à que eu te tenho. Mas são do mesmo tamanho.
Ambos temos a mesma esperança, mas ambos somos capazes de dizer o que ela é: tu porque não sabes, eu porque já nem sei.
Acredita: não somos ambos igualmente ignorantes. Somos ambos igualmente verdadeiros, e o que interessa a cada homem é descobrir a verdade de qualquer maneira, contanto que seja à sua maneira.

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Meu amigo, nunca te resignes!
À resignação do que pode deixar de acontecer chama todos os nomes que queiram dizer medo, e revolta-te contra homens.
À resignação do que não pode deixar acontecer chama todos os nomes que queiram dizer loucura, e revolta-te contra os deuses.
Da revolta contra os homens todos podem aproveitar; da revolta contra os deuses só cada um pode aproveitar.
E repara bem: assim como a revolta contra os homens não os magoa para sempre, a revolta contra os deuses também não.
O que magoa os homens é sentir que os outros não olham para eles.
O que magoa os deuses é sentir que os homens não são dignos deles.

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Se desde sempre nenhum homem se tivesse resignado, já os homens podiam andar contentes, e já os deuses se não riam dos homens.
Não acredites naquelas pessoas que te prometem o Céu para que fiques sossegado: um Céu de resignados seria um Céu de fracos.
Não acredites naquelas pessoas que te assustam com o Inferno para que fiques sossegado. O verdadeiro inferno numa vida eterna só poderia ser o sossego eterno, o tédio resignado que dura sempre – sempre.
E se te negarem estas verdades – desvaira, e faz a apologia do Inferno! Não tenhas medo da blasfémia, porque não pode haver blasfémia nas palavras…

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Não acredites naquelas pessoas que te disserem que tudo o que acontece tinha que acontecer.
A vida seria ilógica. Ora a vida pode ter uma lógica que não seja a lógica dos que vivem. Mas não é com certeza ilógica. Só são ilógicas as coisas mortas.

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Quando te disserem: «vá-se embora, não tenho tempo», responde sempre: «o tempo nunca mais acaba».
Quando te disserem: «não faça isso, tenha juízo», pergunta logo: «qual juízo?»
Quando te baterem, não ofereças a outra face.
O Cristo fez isso porque tinha todo o tempo por sua conta para ajustar contas.
Quando olharem para ti e sorrirem, não sorrias a esse sorriso. Leva-o a sério e nunca te esqueças dele.

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Meu Amigo, não deixes que a vida te resigne!
Se eu fôsse um deus, saberia talvez dizer-te: quando a vida te tiver quase resignado foge dela e mata-te.
Como sou um homem, só sei dizer-te: quando a vida te tiver quase resignado, foge dela. Há muitas maneiras de fugir da vida; ou pelo menos de criar em nós a ilusão de que fugimos dela.

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Adeus.
Olha: se um dia alguém te disser que eu sou um doido, responde muitíssimo a sério: «pois é».
Mas repara bem: responde muitíssimo a sério. “

6 Olhares:

Anónimo disse...

As novas gerações não têm a ideia do que este homem amava a sua Nogueira do Cravo. Embora vivesse em Lisboa de vez em quando aparecia e era muito popular, e chegou mesmo a pertencer à equipa do Operário F.C.Nogueirense onde era capitão de equipa. Anda por ai uma foto dessa época que urge descobri-la!

Anónimo disse...

Muito bonito...grande exemplo ao incentivo pela escrita e pela leitura. Não sendo nogueirense de "gema", tenho orgulho na terra onde vivo, mas admito que na nossa juventude falta esta vontade de enriquecer culturalmente. Temos a obrigação de sermos melhores....

Anónimo disse...

Este sim merecia uma estátua. Pensem nisso. Era só mais 1! Abraço e vale a pena ler estes belos textos.

Unknown disse...

A poesia é muito densa,interessante, com mensagens de muita profundidade, mas que revelam talvez o seu estado de alma.
Quanto à fotografia acima referida, será a que está na página 86 do livro "Memórias do Foot-Ball em Nogueira do Cravo" ?

Rui Fernandes disse...

A fotografia que está na pág.86 do sitado livro é a primeira equipa de Nogueira (Sporting Nogueirense) e é o seu irmão António Lepierre Tinoco.

Unknown disse...

A dúvida surgiu, pois a legenda do livro não esclarece qual dos irmãos é.
É que um é António Carlos Lepierre Tinoco e o outro é Carlos António Lepierre Tinoco.